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IQSC celebra Dia do Químico com destaque ao protagonismo científico de Fernando Lanças

Foto: Henrique Fontes

No dia 18 de junho, quando se celebra o Dia do Químico no Brasil, o Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP reverencia alguém tão apaixonado por esta ciência que acredita que ela deveria ser celebrada todos os dias.

“A Química está em tudo: no alimento que a gente escolhe, no remédio que toma, no chá que prepara. É uma ciência que atravessa nossas decisões cotidianas”, resume o professor Fernando Mauro Lanças, um dos pesquisadores que mais contribuíram para o avanço da Química no Brasil, com uma carreira marcada pela pesquisa e pelo compromisso com a docência.

Prestes a se aposentar do serviço público ao completar 75 anos, Lanças garante que não pretende parar. Continua orientando, coordenando projetos e dando aulas na pós-graduação. Ele afirma que só deixará essas atividades quando, nas suas palavras, “começar a tropeçar nas ideias”.

Difícil imaginar alguém mais apaixonado pela Química.

A Dialética da Natureza

Natural de Rancharia, interior de São Paulo, o professor Fernando Lanças iniciou sua trajetória acadêmica aos 17 anos, matriculado no curso de Ciências Sociais. A escolha veio do interesse genuíno por filosofia e sociologia. Mas foi ainda nos primeiros semestres, ao ler o livro Dialética da Natureza, de Friedrich Engels, que ele começou a repensar os rumos da própria formação. “Percebi que meus colegas repetiam conceitos sobre mecânica quântica e biologia sem compreender o que aquilo de fato significava. Eu queria entender, não apenas reproduzir. E para isso, fui atrás das ciências físicas e biológicas”, relembra.

Foi assim que Fernando migrou para o curso de Ciências Físicas e Biológicas, oferecido na época pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Presidente Prudente, que era um Instituto Isolado de Ensino Superior do Estado de São Paulo até 1976, quando foi incorporado pela Unesp. Em seguida, graduou-se em Química na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Arapongas,no Paraná. E foi lá, numa sala de aula que ele ainda guarda com nitidez na memória, que teve contato com uma figura que marcaria para sempre sua relação com a Química: o professor Munif Gebara. Mesmo sendo gago, Munif transformava as aulas em experiências envolventes. “Ele tinha uma didática extraordinária. Talvez eu tenha herdado dele esse prazer em ensinar. Dar aula nunca foi uma obrigação. Sempre foi um prazer”.

Com o tempo, a formação inicial nas Ciências Sociais deixou de ser apenas um capítulo anterior e passou a se integrar à prática cotidiana do pesquisador. Lanças incorporou o olhar social à Química, conduzindo pesquisas com forte impacto em áreas como alimentos, fármacos, combustíveis e meio ambiente. “Sempre atuei muito próximo das pesquisas aplicadas. Meu foco era identificar e combater contaminações em alimentos, em rios, em tudo que afeta diretamente a vida da população. Acredito que essa preocupação social vem da minha origem nas Ciências Sociais, que sigo carregando comigo até hoje”.

Professor Fernando Lanças fundou e coordena o Laboratório de Cromatografia, que trouxe avanços importantes para a área, consolidando-se como referência nacional e internacional em técnicas de separação e análise química | Imagem: Henrique Fontes

Docência por vocação

A docência sempre esteve presente na trajetória de Fernando Lanças, muito antes da vida acadêmica consolidada na USP. Ainda nos tempos de graduação em Físico-Química, ele percorria escolas públicas do estado ministrando palestras e promovendo a divulgação científica com materiais que ele mesmo preparava. Chegou, inclusive, a criar um clube de ciências, que contava com o apoio da Agência Internacional de Energia Atômica, com sede em Viena, na Áustria. “Eles nos enviavam materiais educativos que eu distribuía para os alunos. Era uma maneira de despertar o interesse deles pela ciência”, lembra.

A experiência como professor de cursinho também marcou esse início. Com passagens por escolas estaduais e pelo tradicional Macpóli, em Campinas, Fernando desenvolveu uma habilidade que se tornaria uma de suas marcas: a capacidade de tornar o complexo compreensível. No ambiente dos pré-vestibulares, era preciso ensinar conteúdos densos e fazer com que os estudantes memorizassem fórmulas e conceitos, mas sem perder de vista o entendimento. E essa preocupação seguiu com ele ao longo da carreira.

“Isso permaneceu comigo. Ontem mesmo eu estava explicando para os alunos da pós o que é um fluido no estado supercrítico, que geralmente é apresentado com modelos complicados, que afastam mais do que aproximam. Tentei mostrar de forma simples, com analogias e recursos didáticos acessíveis. A gente precisa encontrar caminhos para traduzir as complexidades da natureza sem abrir mão do rigor científico. Essa sempre foi uma premissa para mim.

Não pretendo parar, tenho saúde e muita vontade de continuar contribuindo em pesquisas e na formação de novos pesquisadores”, conta o professor Fernando Lanças | Imagem: Henrique Fontes

Foi essa mesma atenção ao ensino que o levou a ser responsável por toda a produção do material didático de Química no cursinho onde atuava, além das aulas presenciais. Com uma carreira já em ascensão, chegou ao então Instituto de Física e Química de São Carlos em 1977, ainda sediado na rua 9 de Julho, onde hoje funciona o Centro de Divulgação Científica e Cultural da USP (CDCC). A entrada na USP aconteceu de forma informal, a partir de uma disciplina isolada e de uma conversa com o colega José Talamoni, que viria a se tornar parceiro de pesquisa. “Eu vim fazer uma disciplina, conheci o Talamoni, e pouco tempo depois ele me ligou falando de uma vaga. Fiz a entrevista, fui aprovado e começamos juntos o grupo de pesquisa. Infelizmente ele nos deixou muito cedo”.

Na época, a estrutura era limitada: os laboratórios funcionavam em salas adaptadas, as bibliotecas eram improvisadas e faltavam recursos básicos. Ainda assim, foi nesse cenário que Lanças deu início ao grupo que mais tarde se consolidaria como uma das maiores referências em cromatografia no país. Quando voltou do pós-doutorado nos Estados Unidos, o Instituto já havia se transferido para o campus atual da USP em São Carlos. “A diferença entre aquele começo e o que temos hoje é imensa. A evolução do Instituto ao longo dos anos foi transformadora e poder ter feito parte disso, desde o início, é algo que levo com muito orgulho”.

Contribuições científicas 

O currículo do professor Fernando Lanças impressiona não apenas pelos números: são mais de 400 publicações científicas e ao menos 10 livros lançados, mas também pela amplitude de sua atuação. Ao longo das décadas, colaborou com órgãos estratégicos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis  (Ibama) e o Ministério da Agricultura (MAPA), contribuindo diretamente para políticas públicas que moldaram a forma como o Brasil lida com pesticidas, alimentos, medicamentos e meio ambiente.

Para além de ser um exímio pesquisador, Fernando Lanças é um multiplicador. Segundo levantamento da Fundação Araucária baseado em dados da Plataforma Lattes, o professor do IQSC é o químico que mais titulou mestres e doutores no Brasil. “São cerca de 135 pesquisadores, entre mestres e doutores, formados por mim. Muitos estão em universidades, empresas e laboratórios no Brasil e no exterior”, destaca.

Inclusive, Lanças formou seis dos professores que atuam no IQSC. “Isso me orgulha mais do que qualquer artigo”. 

Formação inicial em Ciências Sociais deixou de ser apenas um capítulo anterior e passou a se integrar à prática cotidiana do pesquisador. Imagem: Henrique Fontes

Entre suas contribuições mais relevantes à sociedade está a participação na elaboração de normas e exigências técnicas para o uso de pesticidas no país. Lanças foi um dos responsáveis por estudos que embasaram legislações ambientais e sanitárias e contribuiu diretamente na redação do Manual de Ecotoxicidade do Ibama. Seu grupo de pesquisa também foi convocado pelo MAPA para desenvolver protocolos de análise de resíduos de pesticidas em alimentos e plantas.

“Na época, muitas empresas queriam importar dados do exterior para registrar produtos aqui. Mas o nosso solo, o nosso clima são outros. Lutamos para que houvesse exigências adequadas à realidade brasileira”, explica. Essa atuação regulatória se estendeu também à área farmacêutica, com o desenvolvimento de estudos de estabilidade, biodisponibilidade e bioequivalência de medicamentos genéricos. “Chegamos a ministrar cursos para servidores da Anvisa aqui no laboratório, ajudando a consolidar a política nacional de genéricos”, completa.

Outro marco de sua carreira foi o pioneirismo nas pesquisas com fluídos supercríticos, técnica que permite detectar compostos em concentrações ínfimas no interior de alimentos. Os resultados obtidos pelo grupo mostraram que resíduos de pesticidas, muitas vezes indetectáveis por métodos convencionais, podiam ser identificados com maior precisão, uma contribuição reconhecida, anos depois, por pesquisadores do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, que passaram a utilizar essas evidências em suas próprias políticas públicas.

O impacto da atuação científica do professor Fernando foi reconhecido por inúmeras instituições ao longo dos anos. Em 2023, entrou para a lista dos 2% de cientistas mais influentes do mundo, segundo levantamento global da editora Elsevier. No mesmo ano, foi agraciado com o Prêmio Ciência-Tecnologia de São Carlos, na categoria Pesquisador Sênior. Entre as distinções acumuladas ao longo da carreira, destacam-se ainda a Medalha Dieter Klockow (2024) e a Medalha Dr Janusz Pawliszyn (2016), esta última concedida por sua contribuição pioneira no desenvolvimento de técnicas de preparo de amostras na América Latina. Fernando também é membro titular da Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP).

Apesar dos inúmeros feitos, Lanças optou por não patentear suas descobertas. “Por princípio, achei que tudo o que eu desenvolvesse deveria estar disponível para beneficiar a sociedade”, afirma. 

Formação, futuro e desafios

Ao refletir sobre o cenário atual da ciência no Brasil, o professor Fernando Lanças manifesta preocupação com a formação básica dos estudantes que chegam ao ensino superior. Segundo ele, muitos jovens apresentam fragilidades em fundamentos essenciais como química, física e matemática, o que poderá comprometer a ciência desenvolvida no Brasil,  enfraquecendo a capacidade do país de inovar.

Na avaliação do professor, por ser uma ciência central, a Química  precisaria ser mais estimulada no país, atraindo e capacitando  jovens pesquisadores comprometidos com esse campo do conhecimento.

Mesmo prestes a se aposentar da carreira pública, o docente do IQSC não pretende descansar. Pelo contrário, ele seguirá à frente como coordenador geral do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Alimentos, único INCT sediado no IQSC -USP. Além disso, Fernando está escrevendo um novo livro com distribuição voltada ao mercado internacional.

Avô de dois adolescentes, o professor diz que embora não queira parar de trabalhar,  pretende sim diminuir o ritmo. A ideia é dedicar mais tempo à família, à leitura dos livros que tem em sua biblioteca pessoal, e também estudar violão clássico, uma de suas paixões. 

“Já tive uma banda de rock, mas hoje eu gosto muito de violão clássico, acho que é muito relaxante”, conclui. 

Por Gabriele Maciel, da Fontes Comunicação Científica